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O que é Caducidade Superveniente no Licenciamento Ambiental?

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    Carlos Sergio Gurgel
  • há 13 minutos
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Parte significativa da doutrina nacional entende que a licença ambiental constitui ato administrativo vinculado. Para esses estudiosos, uma vez preenchidos os requisitos legais, o empreendedor adquire um direito subjetivo à obtenção da licença, sem margem para indeferimento discricionário pela Administração Pública. Outros, contudo, reconhecem a natureza jurídica de licença, mas sem caráter de definitividade, ainda que haja prazo de validade definido. Nessa segunda linha, a validade da licença está condicionada à manutenção dos pressupostos técnicos, legais e fáticos que justificaram sua emissão.


Alinho-me à corrente doutrinária que compreende a licença ambiental como um ato administrativo discricionário sui generis, isto é, um ato pautado pela discricionariedade técnica, e não por juízos amplos de conveniência e oportunidade. Trata-se, portanto, de discricionariedade mitigada, pois o agente público não decide livremente sobre a concessão da licença, mas com base em critérios técnico-científicos, fundamentados na legislação ambiental vigente e nos estudos apresentados pelo empreendedor, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).


Como exemplo concreto desse modelo, pode-se citar a hipótese em que a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) conclua pela inviabilidade técnica de determinado empreendimento. Ainda que o empreendedor tenha apresentado todos os documentos exigidos, a licença não poderá ser concedida — o que evidencia a aplicação da discricionariedade técnica.


Cabe destacar, no entanto, que a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), Lei Federal nº 15.190, de 8 de agosto de 2025, pode mitigar ainda mais essa margem técnica, especialmente no caso da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC). Nessas situações, trata-se de atividades com impactos ambientais já suficientemente conhecidos, o que permite a adoção de critérios objetivos definidos em lei ou regulamento, aproximando o instituto da lógica dos atos vinculados.


De toda forma, o ponto central a ser enfatizado é que não há direito adquirido à validade da licença ambiental. Isso significa que a licença pode perder sua eficácia diante de fatos supervenientes, como o decurso do prazo de validade ou, mais relevante ao presente estudo, a alteração do ordenamento jurídico ambiental que revogue ou modifique o fundamento legal que sustentava a licença anteriormente concedida. Nessa hipótese, opera-se a chamada caducidade superveniente da licença ambiental, fundada na perda de seus pressupostos legais.


Conforme lecionam Fink, Alonso Jr. e Dawalibi (2002, p.11), a caducidade configura uma das formas de retirada do ato administrativo, ocorrendo quando uma norma jurídica superveniente torna inadmissível a situação anteriormente permitida pelo ato que se pretende extinguir. Diferente da revogação, que se funda em juízo de conveniência, a caducidade resulta de uma incompatibilidade objetiva entre o ato administrativo e a nova ordem jurídica. No âmbito do licenciamento ambiental, esse conceito assume particular importância, uma vez que a modificação da legislação ambiental pode tornar inviável a manutenção de licenças expedidas sob fundamentos normativos ultrapassados, ensejando sua extinção por perda de validade jurídica.


Tal mudança pode gerar insegurança jurídica, sim. Contudo, muitas vezes ela é necessária e legítima, especialmente quando a modificação normativa tem por base evidências científicas que justifiquem o reforço da proteção ambiental, proteção esta que abrange não apenas os ecossistemas, mas também a saúde e a vida humana.


Nos casos menos urgentes, seria desejável que a nova legislação previsse normas de transição, capazes de evitar impactos abruptos sobre empreendimentos já licenciados, mas ainda não implantados. A inexistência de direito adquirido à manutenção da licença ambiental deve ser, portanto, relativizada, sendo analisada à luz das condições existentes no momento da renovação da licença, e das novas exigências legais então vigentes.

 

Sobre esse tema vejamos os seguintes julgados de tribunais pátrios:

 

AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO URBANÍSTICO. MATA ATLÂNTICA. BRUMADINHO. LOTEAMENTO EM ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. LICENCIAMENTO. CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. NOVAS EXIGÊNCIAS LEGAIS ANTES DA IMPLANTAÇÃO DO EMPREENDIMENTO. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO E ATO JURÍDICO PERFEITO. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. NÃO IMPUGNAÇÃO A FUNDAMENTO EM TESE SUFICIENTE PARA MANTER O ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF E SÚMULA 7/STJ. 1. Em Ação Civil Pública, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais condenou a recorrente a obter licença ambiental corretiva para dar seguimento a loteamento realizado em Área de Proteção Ambiental na cidade de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte. A empresa sustenta que o acórdão recorrido estendeu-lhe obrigação que não existia no momento em que o empreendimento foi registrado e autorizado, pois a norma então vigente era a Resolução 01/86, que considerava desnecessário licenciamento em projetos urbanísticos de menos de cem hectares. 2. Atividades e empreendimentos, imobiliários ou não, devem respeitar as legislações federal, estadual e municipal vigentes no momento de sua implantação física, já que licenças ambientais e urbanísticas são emitidas rebus sic stantibus. Daí a existência de projeto simplesmente aprovado, mas ainda não realizado, não induzir situação eficaz, líquida e certa capaz de bloquear limitação administrativa superveniente, decorrente da legislação ambiental, urbanística, sanitária, de parcelamento do solo ou de proteção do consumidor. 3. In casu, não foi corporificado ato jurídico perfeito, pois o que é ambientalmente ilegal não se aperfeiçoa jamais, já que o contrário equivaleria, em outras palavras, a transformar o aberto atentado ao ordenamento jurídico em direito castiço e, pior, em direito adquirido e permanente de poluir e degradar o meio ambiente. 4. O acórdão recorrido aponta a existência de Termo de Ajustamento de Conduta em que a recorrente teria assumido a obrigação de promover o licenciamento. O Termo de Ajustamento de Conduta, uma vez firmado pelas partes, deve ser cabalmente obedecido e cumprido. Além disso, a exigência de licenciamento ambiental é da Lei 6.938/1981, bem anterior à implantação do empreendimento. 5. No acórdão dos Embargos de Declaração, o Tribunal estadual apontou que, "de qualquer forma, certo é que a empresa embargante não observou o prazo de seis meses previsto no Decreto de aprovação do loteamento, não havendo que se cogitar, por isso, de ato jurídico perfeito". Não tendo esse ponto sido atacado pelo recurso, verifica-se deficiência de fundamentação que obstaculiza que dele se conheça. Aplica-se, nesse ponto, por analogia, a Súmula 284/STF. Além disso, o Tribunal de origem decidiu a lide com base na prova dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 7. 6. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (STJ - REsp: 1284451 MG 2011/0227423-3, Relator.: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 20/09/2016, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/08/2020).

 

                Ou ainda:

 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMPREENDIMENTO. LICENÇA AMBIENTAL. O licenciamento ambiental está fundado no princípio da proteção, da precaução ou da cautela, basilar do direito ambiental, que veio estampado na Declaração do Rio, de 1992 (princípio 15). O direito a um meio ambiente sadio está positivado na Lei Maior. Mesmo que se admitisse a possibilidade de direito adquirido contra a Constituição, ter-se-ia, num confronto axiológico, a prevalência da defesa ambiental. Conquanto assegure ao seu titular uma certa estabilidade, a licença não pode ser tida como direito adquirido, já que é obrigatória a sua revisão, por força do que dispõe o inciso IV, do artigo 9º, da Lei nº 6.938. O mero risco de dano ao meio ambiente é suficiente para que sejam tomadas todas as medidas necessárias a evitar a sua concretização. Isso decorre tanto da importância que o meio ambiente adquiriu no ordenamento constitucional inaugurado com a Constituição de 1988 quanto da irreversibilidade e gravidade dos danos em questão, e envolve inclusive a paralisação de empreendimentos que, pela sua magnitude, possam implicar em significativo dano ambiental, ainda que este não esteja minuciosamente comprovado pelos órgãos protetivos.” (TRF4 – Terceira Turma – Relator Luiz Carlos de Castro Lugon – AG 200704000040570 – AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – Fonte: D.E. 20/06/2007).

Por essa razão, parte da doutrina ambiental sustenta que as licenças ambientais deveriam ser compreendidas como autorizações administrativas, e não como licenças em sentido estrito. Esse entendimento se fundamenta na relativa fragilidade e instabilidade desses atos, que estão sujeitos à invalidação, cassação, caducidade ou revogação com maior frequência, sobretudo diante da supremacia do interesse público ambiental.

Sobre essa corrente que entende a licença ambiental como autorização administrativa, importante destacar o seguinte julgado:

 

“O exame dessa lei [Lei n.º 6.938/81] revela que a licença em tela tem natureza jurídica de autorização, tanto que o §1º de seu art. 10 fala em pedido de renovação de licença, indicando, assim, que se trata de autorização, pois, se fosse juridicamente licença, seria ato definitivo, sem necessidade de renovação. (TJSP, 7ª C., AR de Ação Civil Pública, 178.554-1-6, rel. Des. Leite Cintra, j. 12/005/1993)”[1]

 

Convém destacar, contudo, que essa interpretação representa um entendimento minoritário tanto na doutrina quanto na jurisprudência brasileira. O posicionamento majoritário reconhece que a licença ambiental configura um ato administrativo especial ou sui generis, não sendo meramente vinculado, mas tampouco plenamente discricionário. Trata-se de um ato que se insere em uma zona de discricionariedade técnica, fundamentada em critérios legais e científicos, exigindo análise caso a caso por parte da autoridade ambiental competente. Como explica Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2003, p.66):

 

“(...) a licença ambiental deixa de ser um ato vinculado para ser um ato discricionário sui generis’, citando, como exemplo, que o estudo de um impacto ambiental pode apontar um empreendimento como desfavorável e, ainda assim, a autoridade competente proceder ao licenciamento ou vice-versa.”

 

Diante do exposto, é possível afirmar que a caducidade superveniente da licença ambiental, especialmente nos casos em que ocorre alteração substancial na legislação ambiental, representa uma forma legítima de atualização normativa e de reforço à função protetiva do Estado em matéria ambiental. Trata-se de mecanismo que não decorre de arbitrariedade administrativa, mas sim da necessidade de ajuste contínuo entre os atos autorizativos e o ordenamento jurídico vigente, com vistas à preservação do meio ambiente como bem jurídico de natureza difusa e intergeracional, conforme preceitua o artigo 225 da Constituição Federal.


A análise desenvolvida ao longo deste breve ensaio demonstrou que a licença ambiental não se reveste de definitividade ou imutabilidade. Mesmo quando regularmente emitida, sua eficácia depende da permanência dos pressupostos técnicos, jurídicos e científicos que lhe conferiram validade. Em casos de alteração legislativa que modifiquem ou eliminem tais fundamentos, opera-se a caducidade superveniente, extinção objetiva do ato administrativo diante da nova realidade normativa.


Esse fenômeno exige reflexão crítica, pois embora envolva certo grau de insegurança jurídica, especialmente para empreendedores que investem em atividades licenciadas, também se revela necessário à luz do princípio da prevenção e da precaução ambiental. A inexistência de direito adquirido à licença ambiental, reiteradamente reconhecida pela jurisprudência pátria, encontra justificação na própria natureza jurídica especial da licença, que oscila entre os conceitos clássicos de ato vinculado e autorização administrativa, sendo mais apropriadamente compreendida como um ato administrativo discricionário de caráter técnico, ou seja, um ato sui generis.


Ademais, a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (Lei Federal nº 15.190/2025), ao prever figuras como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), tende a modular ainda mais essa compreensão, deslocando determinados tipos de licenciamento para o campo dos atos administrativos predominantemente vinculados, quando se trata de atividades com impactos ambientais já conhecidos e controláveis.


Portanto, a compatibilização entre a proteção ambiental e a segurança jurídica dos empreendimentos regulares exige que o instituto da caducidade superveniente seja aplicado com moderação, fundamentação técnica e respeito ao devido processo legal, especialmente nos casos em que os impactos da mudança normativa não sejam imediatos ou urgentes, conferindo-se um prazo razoável para que o empreendedor consiga se adaptar às novas exigências. Para isso, recomenda-se que o legislador e o regulador estabeleçam normas de transição claras e proporcionais, capazes de garantir a estabilidade jurídica, sem sacrificar a efetividade da tutela ambiental.


A caducidade superveniente, quando bem aplicada, não se configura como fragilidade do sistema, mas como expressão legítima da supremacia do interesse público ambiental e da necessidade de constante evolução das políticas ambientais, em sintonia com o progresso técnico-científico e os desafios da sustentabilidade contemporânea.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Lei nº 15.190, de 8 de agosto de 2025. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15190.htm>. Acesso em: 18 set. 2025.

 

FINK, Daniel Roberto; ALONSO JR., Hamilton; DAWALIBI, Marcelo. Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

 

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

 


[1] TJSP, 7ª C., AR de Ação Civil Pública, 178.554-1-6, rel. Des. Leite Cintra, j. 12/005/1993, citado por ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, página 286.


OBS: Imagem extraída do site: <https://pronatur.com.br/solucao/licenciamento-ambiental/>. Acesso em 19 de setembro de 2025.

 
 
 

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