Valorização do Sítio Histórico da Rampa (Natal/RN): patrimônio, memória e desenvolvimento local.
- Carlos Sergio Gurgel
- 14 de ago.
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Natal carrega, às margens do Potengi, um dos sítios históricos mais singulares do Brasil: a antiga Rampa de hidroaviões, hoje sede do Museu da Rampa. Ali, onde a poucos metros, o rio encontra o Atlântico e a paisagem se abre em arcos de luz ao entardecer, o Brasil projetou-se ao mundo. Durante a Segunda Guerra, a Rampa integrou rotas aéreas estratégicas e foi palco da aproximação diplomática que selou o apoio brasileiro aos Aliados — episódio que a memória local consagrou como “Conferência do Potengi”, encontro simbólico entre Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt. Não é apenas história de manuais: é memória viva, capaz de educar, inspirar e desenvolver a cidade. Falo também com o coração de quem traz a guerra dentro de casa: meu avô, Major Jorge Martiniano, foi um dos enviados ao teatro de operações na Itália e, ao regressar, recebeu medalhas de mérito como ex-combatente. A história da Rampa, portanto, não é distante, pois atravessa famílias potiguares, ecoa em fotografias guardadas, cartas, silêncios e orgulhos discretos.
Apesar desse capital simbólico, a Rampa ainda carece de uma valorização que faça justiça à sua potência narrativa e ao seu impacto para a cidade. O museu hoje cumpre papel meritório, mas a rampa em si, o plano inclinado que recebia e embarcava passageiros dos hidroaviões, permanece subaproveitada como peça central da interpretação pública. Em outras palavras: a experiência de visitação poderia ser mais imersiva, mais sensorial e mais didática, sem abrir mão do rigor histórico. A boa notícia é que o ordenamento jurídico brasileiro oferece todos os fundamentos para isso. A Constituição de 1988, nos arts. 215 e 216, reconhece os direitos culturais e impõe ao Poder Público o dever de apoiar e incentivar a valorização do patrimônio cultural, material e imaterial, protetor de nossa identidade e memória. Não se trata de nostalgia: trata-se de efetivar direitos, educar para a cidadania e ativar a economia local por meio da cultura. Não se pode esquecer que patrimônio cultural, ou seja, a cultura é uma das dimensões do conceito de meio ambiente, que deve ser visto pela perspectiva do ambiente natural, do ambiente construído (artificial), do meio ambiente do trabalho e da cultura.
O caminho, a meu ver, passa por uma virada museográfica e urbanística no sítio da Rampa. Imagino um núcleo imersivo que reconstrua cenários de época, com mobiliário, equipamentos e indumentárias dos anos 1930–1940, permitindo ao visitante “entrar” no tempo da guerra e da aviação transatlântica. Um conjunto de figuras hiper-realistas, como um “museu de cera” curatorialmente responsável, poderia reconstituir cenas icônicas: marinheiros e aviadores em operação, civis no embarque, e os próprios chefes de Estado em um veículo militar, como na famosa visita. No interior, uma mesa de assinaturas com fac-símile do documento de cooperação Brasil–EUA, painéis bilíngues e áudio-guias contariam a história de modo acessível e preciso.
Ver abaixo imagem gerada por IA, seguindo prompt fornecido pelo professor Carlos Sérgio Gurgel (UERN), do que poderia ser recriado no Museu da Rampa, em Natal/RN:

Ao ar livre, a reposição (ou réplica) de um hidroavião posicionado na rampa transformaria o lugar em sala de aula a céu aberto. A varanda do prédio, com seus arcos e a vista generosa do rio, pede, naturalmente, um café cultural. Operado pela iniciativa privada, mas com curadoria de memória, ele poderia abrigar pequenas vitrines de objetos, leitura orientada e programação autoral: clubes de livros, ciclos de cinema, conversas com historiadores, geógrafos, arquitetos e veteranos ou seus descendentes. Esse espaço de fruição não competiria com o museu; ao contrário, ampliaria a permanência do visitante, qualificaria a experiência e ajudaria a sustentar financeiramente o conjunto.
Propomos ainda a exposição, com bonecos de cera, a antológica cena dos presidentes em um Jeep (como na icônica e histórica fotografia), como também a instalação de uma estátua em ferro ou bronze de Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt olhando para o Potengi, posicionada na varanda do prédio para dialogar com a beleza dos seus arcos. O conjunto seria complementado por um espaço de lanche e café, operado pela iniciativa privada, criando um ponto de fruição cultural e turística que valoriza a paisagem e a memória do local (ver foto na sequência).

Outro pilar é a pesquisa. A Rampa merece, e comporta, um centro de estudos dedicado à Segunda Guerra no Nordeste e à geopolítica do Atlântico Sul, em parceria com a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e/ou outras instituições públicas da cidade. Um repositório digital de memórias orais, cartas, fotografias e mapas, respeitando a proteção de dados pessoais, poderia convocar a sociedade a compartilhar acervos familiares hoje dispersos. Há um circuito transgeracional de sentido que só se ativa quando a comunidade é chamada a coautorizar a própria história.
“Mas de onde viria o dinheiro?” Do tripé correto de governança, criatividade e instrumentos já existentes. As parcerias público-privadas (PPP) podem estruturar a operação do café e de serviços de apoio. Vale lembrar que a Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet) é fonte legítima para captação de exposições e acervos; convênios e termos de colaboração com organizações da sociedade civil custeiam mediação e ações educativas; linhas estaduais e municipais de cultura podem somar. A chave é institucionalizar uma governança transparente, com conselho curatorial, indicadores de qualidade, prestação de contas e plano de preservação que respeite as diretrizes de proteção do patrimônio. É viável, é legal e é urgente.
Há, por fim, um argumento econômico difícil de ignorar. O turismo de memória é segmento consolidado no mundo: cria empregos, dinamiza cadeias criativas, vocaciona territórios para experiências autênticas. Natal já é sinônimo de sol e mar; pode ser, também, destino de história e conhecimento. Ao dar centralidade à rampa propriamente dita, ao reconstituir cenas e objetos, ao abrir a varanda para o café e as leituras, a cidade eleva o padrão da oferta turística sem descaracterizar o lugar. Ao contrário: qualifica a paisagem, agrega camadas de
sentido e encurta a distância entre quem visita e quem vive aqui.
Valorizar a Rampa é honrar os que serviram, como o Major Jorge Martiniano e tantos outros, é ensinar às novas gerações que liberdade e democracia tiveram preço, é afirmar que cultura não é luxo, mas direito. É também um gesto de autoestima urbana: dizer que Natal não apenas observa o próprio passado, como o interpreta, o cuida e o projeta. Quando a Constituição nos pede que apoiemos e incentivemos o patrimônio cultural, não nos dá uma tarefa burocrática; confia-nos um dever de futuro. Que saibamos cumpri-lo à altura do que o Potengi testemunhou, e continua a testemunhar, a cada fim de tarde.
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